Desde que se tem registro da origem do ser humano, ao redor de 200.000 a C, o homo sapiens sempre buscou algum tipo de simbolismo ao sobrenatural (ex: deuses) e mais tarde com o desenvolvimento da agricultura, há cerca de 10.000, estes simbolismos se manifestaram em forma de culto, e ainda foram se modificando tornando-se ainda mais complexos e elaboradas, no modelo que temos e denominamos de religião. Como definição a religião é um sistema complexo de crenças e práticas que buscam transcender uma explicação racional da realidade e oferecem respostas para questões existenciais humanas conectando indivíduos através deste sistema complexo de crenças e práticas.  Elas podem ser classificadas como monoteístas, politeístas ou panteístas, cada uma com diferentes visões do divino.

o homem leão

Homem-Leão (Löwenmensch) esculpido em marfim de mamute, 35-41.000 anos (Paleolítico Superior) um dos exemplos mais antigos conhecido de abstrações humanas em forma de arte. Está exposto no Museu de Ulm, na cidade de Ulm, Alemanha.

Para se compreender a relação da religião com o ser humano, devemos primeiro compreender o que é fundamental da cognição humana, de forma mais ampla o que é fundamental da consciência humana. 

De acordo com Ayn Rand: “Só há duas alternativas fundamentais no universo – existência ou não existência- que só se aplicam a uma única classe de entidades: os organismos vivos. A existência da matéria inanimada é incondicional, mas a existência da vida não é: ela depende de um curso de ação específico. A matéria é indestrutível, e não pode deixar de existir. É apenas o organismo vivo que se defronta com dias alternativas constantes: vida ou morte. A vida é um processo de ação que se autossustenta e gera a si própria.  Se um organismo fracassa neste processo ele morre. Os elementos químicos que o compõem permanecem, mas a vida desaparece. É apenas o conceito de vida que torna possível o conceito de valor.  Só para um ser vivo as coisas podem ser boas ou más”. 

Toda entidade viva, organismo, tem uma capacidade de sobrevivência, ou seja, inteligência para preservar e sustentar a sua própria vida. Organismos simples como plantas sobrevivem por meio de suas funções físicas automáticas (ex: estendem as suas raízes de maneira mais profunda para encontrar água). Organismos superiores como os animais tem necessidades mais complexas por isso necessitam uma faculdade que é a consciência para determinar ações mais amplas de sobrevivência. Os animais com uma consciência mais simples como cachorro, gato, cavalo não tem escolha sobre o conhecimento ou as habilidades que adquire, não tem escolha sobre o padrão de valor que rege sua ações, não tem como ampliar ou ignorar suas habilidades, ou seja, ele tem um instinto que é um código automático de sobrevivência. O ser humano é o animal mais complexo, com uma consciência mais sofisticada em termos de habilidade de sobrevivência, sua cognição é volitiva e conceitual. O homem não tem código de valores automático de sobrevivência, para a sua sobrevivência ele precisa escolher o que é bom ou mal para ele, através do conhecimento. Ele nasce sem nenhuma garantia intrínseca, de sobrevivência, mas tem uma capacidade ilimitada de adquirir conhecimento para a sua sobrevivência. “O homem é um animal racional”. Aristóteles.

A consciência do homem através da razão é seu meio básico de sobrevivência. A razão significa a capacidade da cognição humana de compreender a realidade através da formação de conceitos (abstrações). O processo de formação de conceitos é melhor explicada por Ayn Rand: “ O processo de formação dos conceitos consiste um isolar mentalmente duas ou mais existentes por meio de sua característica diferenciadora, e reter esta, enquanto omite-se suas medidas particulares, com base no princípio de que estas medidas devem existir em alguma quantidade, mas podem existir em qualquer quantidade. Um conceito é uma integração mental de duas ou mais unidades que possuem características diferenciadoras com suas medidas particulares omitidas”. 

O mecanismo base da formação do nosso pensamento abstrato é um processo cognitivo de diferenciação e integração. A medida que a necessidade de conhecimento se amplia a formação conceitual se amplia de conceitos mais próximos do perceptual como cadeira, gato, homem, para conceitos mais distante do perceptual, abstrações de abstrações, como justiça, animal , politica , cultura que se combinam para formar a maneira como o ser humano pensa, ou seja, em proposições que são combinações de conceitos para denotar uma ideia, que consiste um método da consciência de conceitualização. Este processo cognitivo não é automático, em cada situação da vida do homem ele tem o livre arbítrio para pensar ou se evadir desse esforço, de buscar compreender princípios ou agir de maneira aleatória movido pela emoção do momento, ou seja, pelo seu subconsciente, que é um tipo de registro automático da nossa consciência de julgamento de valores previamente definidos, que são hierarquizadas em grau de importância pela intensidade da emoção relacionada, no entanto, ela não é um guia confiável  de conhecimento pois o contexto atual pode exigir uma avaliação cognitiva atualizada da realidade.

O ser humano não tem escolha em relação o que é metafisicamente dado , ou seja, aquilo que é dado pelo existência e não feito pelo homem, um pode não desejar que não exista diferença entre os seres humanos (ex: igualitarismo) mas na natureza humana cada um tem diferentes habilidades e necessidades, tornando impossível uma sociedade igualitária, no entanto, o homem é capaz, caso ele queira, de evitar a desnutrição infantil já que a produção e distribuição de alimentos pode ser feita pelo homem. 

A existência humana exige três questões fundamentais a serem respondidas:

  1. Sobre a existência (metafísica): O que está aí? Aonde estou? O que é isto? O que eu preciso saber disto? Como funciona isto?
  2. Sobre como eu compreendo a existência (epistemologia): Como eu descubro isto? Como eu sei disto? Como provo isto? Como tenho certeza disto? 
  3. Sobre o que fazer (ética para o individuo e politica no contexto social): O que eu faço? O que devo fazer? O que certo a se fazer? 

A religião floresce da necessidade de respostas para estas questões fundamentais humanas (metafísica, epistemologia, ética e politica), que são a base para o conhecimento humano necessário para a sua sobrevivência. O denominador comum de todas as religiões é a crença de uma realidade (metafísica) além do mundo percebido (ex: paraíso, inferno, deus), e a fé, acreditar mesmo sem evidência, é o meio pela qual o individuo na religião conhece a verdade (epistemologia) através de uma revelação, intuição, autoridade e a consequência desta visão de mundo é uma ética voltada para um bem maior além do próprio individuo na forma de  altruísmo, já que o individuo vive em um universo aonde as leis da natureza não podem ser claramente compreendidas, ele necessita deste sobrenatural, ou alguém, ou grupo de pessoas que revele para ele o conhecimento do que é certo a se fazer.

A filosofia nasce pela busca de respostas pelas mesmas questões fundamentais da vida humana, pela qual a religião busca responder. Tales de Mileto (585 a. C.) na Grécia antiga foi o fundador desta nova maneira de responder tais questões, ele buscou responder, um questão metafísica: Qual o princípio de todas as coisas ? apesar da sua resposta ter sido incorreta, água, ele utiliza um método diferente, uma abordagem naturalista da compreensão do mundo, através da observação da realidade, com suas leis naturais,  buscando conexões de uma maneira lógica, buscando a unificação da diversidade em um denominador comum, a qual integraria todas as diferenças observadas, o um em muitos, esta é essência da abordagem cientifica. Após Tales, Sócrates (470 – 400 a. C.) utilizou o mesmo método racional, voltado para as questões éticas, ele buscava a definição de conceitos universalmente utilizados pelo homem como justiça, coragem, virtude e etc, ou seja, ele buscava da verdade através da correta definição dos conceitos. De certa forma, Sócrates acreditava que o conhecimento humano dependia da validade destes conceitos, através de suas definições e que estes seriam essencialmente a capacidade humana que nos distingue de outros animais, denominado de racionalidade. 

Tales de Mileto

Tales de Mileto  (585 a. C), o primeiro filósofo ocidental.  Mosaico de Tales de Mileto datado do século II do Museu Nacional de Beirute.

Desde a descoberta da filosofia, no decorrer da história, temos, no mais comum, uma combinação de religião com permeio filosófico (ex: no cristianismo Santo Agostinho , 354 – 430, com a junção de elementos platonistas) e de filosofia com permeio de religião  (ex: na filosofia moderna Emmanuel Kant , 1724-1804, na sua defesa do númeno, objeto incognoscível, na critica da razão, em defesa da fé).

Mesmo que o individuo não tenha explicitamente nenhuma religião ou filosofia de vida, ele não escapa de já ter uma reposta implícita em seu subconsciente das mesmas perguntas fundamentais, que a religião e ou filosofia respondem, ele só não sabe que já é orientada por tais premissas. Podemos comparar nosso subconsciente como uma espécie de computador que armazena premissas cognitivas de julgamento de valor passadas, até o momento presente, ele armazena tais premissas desde do inicio da nossa vida, já nos primeiros anos, de forma primitiva, a partir do momento que conseguimos formar frases inteiras e vai até o final da nossa vida. Para nossa própria sobrevivência nosso cérebro organiza em termos de graus de importância tais premissas em nosso subconsciente e sua reação ou resposta é em forma de um sentimento (ex: tristeza, alegria, ansiedade, tranquilidade e etc.), na medida que o tempo passa o individuo necessita expandir seu conhecimento para conseguir lidar com aspectos mais complexos da vida (ex: de filho, para filho e irmão, depois para filho, irmão e marido, depois para filho, irmão, marido e pai e assim por diante), é necessário uma atualização conceitual que não é automática, que exige esforço volitivo, então nosso subconsciente pode ser atualizado pelo nosso consciente volitivo e premissas passadas vão sendo expandidas e muitas vezes totalmente substituídas por novos conceitos, proposições e princípios, para conseguirmos lidar com a realidade, ou seja, o concreto de maneira eficiente.

Não dar importância na busca de uma resposta consciente para tais questões existências, significa ficar a mercê do emocional, em ultima instância premissas passadas, que podem estar desatualizadas ou incompatíveis com o momento. Imagina alguém pensar que é certo não confiar em alguém, simplesmente pelo seu status econômico, exemplificando uma pessoa com menos posses referindo a alguém com mais posses: “Eu sinto que eu não deveria confiar nele”. Neste caso, apesar dele não saber, uma premissa passada ficou registrado no seu subconsciente , “ricos não merecem confiança”. Isto, porque, um dia, seu pai, foi enganado por um “amigo” rico, e ele assimilou a decepção do seu pai, na premissa que ricos não merecem confiança, sem levar em conta que não é o status econômico que determina o caráter de um individuo mas sim sua escolha ética que pode ser avaliado objetivamente pelo seu comportamento. Provavelmente o maior prejudicado neste exemplo é o próprio individuo que deixa de ter grandes oportunidades por deixar suas premissas invalidas a mercê do seu subconsciente. 

Muitas pessoas se agarram a uma religião ou filosofia em momentos difíceis na vida. Isto porque a pessoa começa a perceber que se deixar guiar pelas emoções (subconsciente) nas escolhas da sua vida não traz resultados satisfatórios, mas também muitas pessoas, mesmo com uma religião ou  filosofia de vida continuam confusas, frustradas e inseguras, e porque isso ocorre?  A resposta esta, em primeiro lugar, na verdade ou falsidade dos seus princípios (religiosos ou filosóficos) e em segundo lugar o quanto você se esforça para aplica-lo na sua vida no concreto. 

A religião e a filosofia existem por uma necessidade de resposta existencial humana, elas existem por uma necessidade humana de conhecimento para ele sobreviver e viver melhor. Um principio só pode ser conhecimento somente se ele for verdadeiro, ou seja, corresponda com a realidade, caso contrário, ele é uma ideologia ou narrativa, que é arbitrário ou falso. Não é qualquer ideia que serve, mas as que corresponda com a realidade. Mesmo que alguém com dor abdominal fique momentaneamente aliviado porque alguém disse a ele que ele será curado ao tomar um chá, se a dor for causada por uma apendicite aguda somente uma cirurgia removerá o seu problema. A realidade se impõe sobre qualquer ideia, a realidade é a fonte de conhecimento, e o conhecimento em princípios é a forma humana de lidar com a realidade de maneira eficiente.

A medida da veracidade do seu conhecimento existencial será a medida direta da sua satisfação com a vida pela maior compreensão da realidade, conquistas e segurança, pois esta é a função do conhecimento, fazer o ser humano viver melhor, e o contrário, a medida da falsidade das suas ideias existenciais será a medida direta da sua insatisfação com a vida, confusão mental, frustração e insegurança pois este é o resultado de uma ideologia que não é conhecimento pois não corresponde com a realidade.

É importante que o individuo compreenda que problemas psicoemocionais como ansiedade, tristeza e medo tem como base seus pensamentos que em ultima instância são determinadas pelas suas premissas existências, que podem estar no seu pensamento de forma explícita ou implícita, é preciso ter coragem para revê-las e muda-las quando necessário. 

Autor: Rafael Higashi, médico (52.74345-3) mestre em medicina, neurologista (RQE: 13728) e nutrólogo (RQE:19627) da Clínica Higashi.

Referências bibliográficas:

  1. Philosophy: Who needs it? (1982). Ayn Rand
  2. Objetivismo: Introdução à Epistemologia e Teoria dos Conceitos (1966). Ayn Rand
  3. Objectivism: The Philosophy of Ayn Rand (1991). Leonard Peikoff
  4.  How We Know. Epistemology on an Objectivist Foundation (2014). Harry Binswanger.